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Um friso de praia debruado pelo muro das montanhas. Nenhuma brecha ou porta que o introduzisse na largueza além serrana, o europeu estava confinado à beira mar!". “Mas em São Vicente, existia uma exceção. Havia uma estrada antiga, visivelmente transitada”. Oito palmos de largura a mergulhar no interior brasileiro. O português, vendo que aquele caminho pouco perdia para as vias de Portugal, extasiado perguntou ao índio. O que é isso? Era a primitiva via indígena de comunicação pré-colonial chamada de Peabiru ou Peabiyú. Estendia-se por mais de 200 léguas, desde a Capitania de São Vicente, na costa do Brasil, até as margens do Rio Paraná, passando pelos rios Tibaxia (Tibagi), Huyabay (Ivaí) e Piquerí." (https://www.gazzetavicentina.com.br/peabiruocaminho). |
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Peabiru-s: São Vicente, Santa Catarina e o ramal Ponta Grossa a Sorocaba, e a esta ligação o acesso a partir de Cananéia Imagem, a grosso modo, pelas descrições de Valla |
Ambas as vias se uniam em Iguaçu [PR] para a transposição do rio Paraná, passando pelas terras de Paraguai e chegar aos Andes - localidade de Cuzco [Bolívia], o coração do Império Inca na época da conquista ibérica, com ramais para as costas do Pacífico em Peru e Equador.
6.1.2. Uma trilha bastante movimentada
Se os primeiros indesejados portugueses foram
deixados numa das ilhas em Cananéia, entre os anos 1490 e 1502, cabe pressupor
tenham sido eles os precursores a atingir o continente, interiorizando-se pelas
matas, alguns bem-sucedidos, outros trucidados pelos selvagens.
Desconhecendo-se os pioneiros europeus, também não se
sabe quando tais caminhos pré-cabralianos foram percorridos pela primeira vez,
nem qual o tamanho de alguma possível incursão inaugural, mas a mais importante
e longa viagem certamente ocorreu entre 1502/1513, a partir de São Vicente para
se chegar aos Andes, em pleno centro do Império Inca. Trata-se do trajeto mais
citado da antiga senda, São Vicente às costas do Pacífico, com um ou outro
historiador a acrescer ou excluir ramais como partes da via principal, por
exemplo, o uso do ramal desde Sorocaba a Ponta Grossa.
Dessa viagem é o que entende o Cortesão, ao mencionar que o galo trazido com outras espécies animais da Europa para Cananéia, em 1502, já no ano de 1513 aparecia na corte inca, levado numa expedição via Peabiru, causando pasmo tanto que o futuro governante adotaria o nome Atahuallpa, isto é, Galo. "Esta rapidez na disseminação dum elemento cultural prova quanto eram rápidas e ativas as comunicações através do continente" (Donato, 1985: 30).
—Os autores não desprezam possibilidades que tal ave tenha chegado ao império inca pelo Pacífico, também por volta de 1513, quando Vasco Nuñez de Balboa aportou pela primeira vez às costas do Pacífico Sul, e o galo, se componente daquela expedição, poderia ter sido introduzido em terras equatorianas por algum batedor indígena e, de pronto, levado às mãos dos incas, cujo império então se estendia até o Equador.
Respeitado o Cortesão, tal viagem bem pode ter sido a
primeira passagem do homem branco pelo Vale do Paranapanema, mas os registros
são frágeis. Com segurança histórica, o português Aleixo ou Alejo Garcia, à
frente de quatro ou cinco portugueses e quase uma centena de índios
pacificados, passou pelo Vale Paranapanema em 1526, numa viagem de São Vicente
[SP] ao Peru, porém morto por assassínio no retorno foi substituído pelo
capitão Pero Lobo, que chegou a São Vicente com produtos andinos e milhares de
índios aprisionados (Donato, 1985: 30).
Do grande trajeto, em partes pelo Vale Paranapanema,
consta oficialmente que "As primeiras referências ao encontro de riquezas
datam de 1526, quando Aleixo Garcia, saindo de São Vicente em companhia de três
ou cinco portugueses, à frente de um exército de índios, pelo rio Paraná,
alcançou o Paraguai, chegou ao Peru" (Gomes, 1972: 59).
Já em 1521 o mesmo
Garcia, a serviço da Espanha, havia feito uma viagem a Potosí, Bolívia, pela
Peabiru a partir do hoje estado de Santa Catarina, passando pelo atual Paraná,
quando ambos ainda territórios espanhóis (Valla - Jean Claude, 'O Segredo dos
Incas', referência a Jacques de Mahieu, 1978: 90).
Do lado português tem-se o registro da viagem de
Francisco de Chaves aos Andes, sob autorização do colonizador Martim Afonso de
Souza. Chaves, genro de Cosme e igualmente degredado, partiu de São Vicente em
1º de setembro de 1531, com o capitão Pero Lobo, mais cerca de cem homens armados
e um sem número de indígenas escravizados, rumo aos Andes via Paranapanema,
prometendo grande carregamento de ouro e prata além de escravos, mas quatro
meses depois, na travessia do Rio Paraná, a expedição foi destroçada pelos
índios guaranis (Borges Hermida, 1958).
Entradistas espanhóis, portugueses ou de outras
nacionalidades a serviços de um ou outro reino, nenhum deles teve a
significação de Cosme.
06.1.3. Uma estrada
desde os tempos do 'Império Tiahuanaco' nos Andes
A Peabiru é uma construção pré-incaica, no entanto,
nenhuma documentação sobre o assunto, apenas memórias e fabulações.
As duas sendas Peabiru, de interesse neste trabalho e
aqui denominadas São Vicente e Santa Catarina, para melhores entendimentos,
eram obras bem engenhadas, que não chegaram inteiras aos dias de hoje, senão as
partes de trechos servindo de base e direção para algumas das atuais estradas
de rodagens, outras incorporadas às grandes fazendas e assim abandonadas até o
desaparecimento total.
06.1.4. Os 'Atumuruna',
em 1350, teriam sido os construtores
Não se sabe, com certeza, quem foram os realizadores
daquelas estradas. Os difusionistas apontam os Incas, ignorados os motivos para
uma estrada transoceânica.
Pelas exposições de Valla tais feitos cumprem aos Atumuruna,
em meado do século XIV, quando refugiado em territórios do Brasil e Paraguai.
A nação Atumuruna, que estudos apontam descender de
escandinavos [viquingues] na América do Sul, teria sido a fundadora do grande
império Tiahuanaco, instalado no século XI/XII, com diversas tribos indígenas
tributárias ou agregadas, a exemplo dos revoltosos Araucano [Chile] que, por
volta de 1350, à frente de outros confederados insurretos derrotaram o Império,
colocando em fuga seus sobreviventes que chegaram ao Paraguai, por via
terrestre, e ao Brasil pela transposição do rio Paraná ou por este descer ao
Atlântico, para depois abeirar-se em determinados pontos do litoral brasileiro,
Santa Catarina e São Vicente, princípios das futuras veredas
Atlântico-Paraguai-Andes e Pacífico.
Lembranças históricas apontam presenças de Atumuruna
no Paraguai, até bem pouco tempo ainda encontradas nos Guayaki, os índios
louros do Paraguai (Valla, 1978: 75-76); também nos índios brasileiros de pele
clara, os chamados Auati - gentes de cabelos claros, vinculados aos guaranis e
citados em crônicas dos primeiros tempos do Brasil português, excluídos aqueles
originados ou com eles confundidos, nascidos das relações indígenas com
espanhóis e holandeses.
Caminhos, portanto, não faltaram aos Atumuruna para
suas escapadas, segundo especialistas citados por Valla (1978: 91-102),
inclusive por via oceânica, a exemplos dos 'Kaole' no Taiti e dos 'Ehu' no
Havaí, mais os misteriosos 'homens louros' de algumas das ilhas polinésias
(Valla, 1978: 71-73).
Não se trata de concepção isolada. Relatos de
expedições a serviço de Espanha mostram o uso fluvial dos rios Prata, Paraná e
Paraguai, como conhecidos caminhos da Rota Cone Sul, para se chegar à estrada
Peabiru, do lado paraguaio (Carvalho, 2012) e adiante, por terra, até os Andes
e Pacífico.
Por conseguinte, admite-se a rota terrestre
Paraguai-Andes-Pacífico desde a fundação do Império Tiahuanaco - século XII,
enquanto os trajetos do lado brasileiro são construções mais recentes, ou seja,
depois da entrada Atumuruna em terras do Brasil, por volta do ano de 1350,
então eles os construtores das duas principais rotas [Peabiru], São Vicente e
Santa Catarina, em busca do retorno aos Andes.
Alguma similitude existente entre as estradas
Peabiru, baseada em antigos relatos, com certas construções observáveis em
sítios arqueológicos do Império Tiahuanaco, como aterros, calçamentos, ruas e
estradas, apontam pelo menos para uma origem comum daquelas construções.
Recentes estudos arqueológicos sobre aquele império, comparados àquilo que
resta da Peabiru, assinalam semelhanças entre elas que, em absoluto, podem ser
vistas como meras coincidências.
06.1.5. Da Peabiru São
Vicente - o trecho pelo Vale Paranapanema
Da estrada, a partir de São Vicente, o governador geral Tomé de Souza proibiu-lhe trânsito, em 1º de junho de 1553, com justificativas ao rei português:
—"Achey que os de Sam Vicente se comunicavão muyto com os castelhanos e tanto que na Alfândega rendeu este ano passado cem cruzados de direitos de cousas que os castelhanos trazem a vender. E por ser com esta gente que parece que por castelhanos não se pode V.A. desapeguar delles em nenhuã parte, hordeney com grandes penas que este caminho se evitasse, ate ho fazer saber a V.A. e por nisso grandes guardas e foy a causa por honde folguey de fazer as povoações que tenho dito no campo de Sam Vicente de maneira que me parece que o caminho estará vedado" (Apud: Donato, 1985: 30).
O uso da Peabiru foi bastante controverso. Washington Luiz, em sua obra 'Na Capitania de São Vicente' (Senado Federal - Brasil, 2004 v. 24: 340), informa:
— "Alguns governadores do Brasil proibiram, por instantes recomendações e sob penas severas, o trânsito por aí, como o fez D. Duarte da Costa em 1556 (Atas da Câmara de Santo André: 36, referência). No interregno de seus dois governos, no Brasil [1591/1602 e 1609/1611], Francisco de Sousa, ao contrário em 1603, mandou reabri-lo (Atas da Câmara de Santo André, vol. 2º, pág. 138).
Se a proibição não alcançou os efeitos pretendidos nem
evitou circulações de gentes por ela, no entanto causaram-lhe os descuidos de
manutenção oficial, principalmente em pontos elevados, aterros, pontes
elevadiças, empedramentos e nivelamentos de trechos sujeitos aos alagamentos, e
ausência de rebaixamentos onde necessário.
Pelo lado espanhol, a Peabiru por Santa Catarina
igualmente perdeu a importância dentro do território hoje brasileiro, para a
rota fluvial do cone sul e pela travessia terrestre entre o Atlântico e
Pacífico, pelo istmo mais a meridional da América Central, no atual Panamá, à
mesma maneira que por outros caminhos utilizados pelos espanhóis, preocupados
que estavam com as riquezas do Peru e Bolívia, até o escassear do ouro e da
prata, quando reiniciaram a interiorização exploratória e de fixação do
Vice-Reino Espanhol do Rio da Prata em terras paraguaias, pelos rios Paraná,
Paranapanema e Tietê, em busca de interesses para a Coroa Espanhola, com isso a
revitalizar a Peabiru a partir do ano de 1603 quando Espanha, Portugal e
respectivas colônias agrupadas, então, num só reino.
06.2. Atalho pela
Serra Botucatu à Paranan-Itu [Salto Grande] no Paranapanema
Júlio Manoel Domingues, em sua obra 'A História de Porangaba' (2008: 21), transcreve levantamento histórico sobre a primeira concessão sesmarial em Tatuí, publicado pelo advogado e historiador Laurindo Dias Minhoto, onde a primeva menção de um caminho para Botucatu - citado Intucatu, no ano de 1609:
—"O mais remoto documento, que conseguimos descobrir, foi a carta de sesmaria concedida em 10/11/1609, pelo Conde da Ilha do Príncipe, por seu procurador Thomé de Almeida Lara, sendo aquele donatário da Capitania de São Vicente. Essa concessão foi feita a João de Campos e ao seu genro Antônio Rodrigues e nela se lê: "seis legoas de terras no districto da villa de Nossa Senhora da Ponte (Sorocaba), na paragem denominada Ribeirão de Tatuí, com todos os campos e restingas para pastos de seu gado, como também Tatuí-mirim thé o Canguera, com largura que tiver, com mais trez legoas em quadra no Tatuí - guassú e Canguary, trez legoas para o caminho de Intucatú, seis legoas correndo paraguary abaixo para a parte do Paranapanema, com condição de pagar os dísimos a Deus Nosso Senhor dos productos que dellas colherem"." (Tatuhy Através da Historia, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. 25 - 231-200, 1917: 138; in Domingues - José Manoel, A História de Porangaba, 2008: 21).
—Os autores contestam a data 10 de novembro de 1609 para o documento analisado por Dias Minhoto, sem prejuízos quanto as demais citações. Ora, o título nobiliárquico de Conde da Ilha do Príncipe somente foi criado pelo Rei D. Felipe IV de Espanha e III de Portugal e Algarves, por Carta Régia de 4 de fevereiro de 1640, a favor de Luís Carneiro de Sousa.
Para o estudioso jesuíta, monsenhor Aluísio de Almeida, entre os anos 1608/1628 eram comuns as viagens subindo a Serra e daí ao baixo Paranapanema, tendo o rio Pardo como referência (Memória Histórica sobre Sorocaba - I, Revistas USP, 2016: 342 (8). Também o estudioso, igualmente jesuíta, Luiz Gonzaga Cabral, ao mencionar Aleixo Garcia informa que os padres abriram estradas desde o litoral a São Paulo e outras rumo ao interior, inclusa aquela que, pela Serra Botucatu levava ao aldeamento no Paranapanema, com comunicação fluvial para o Paraná e Mato Grosso (Apud Donato, 1985: 35); sendo certo que os padres, no início colonial, foram usuários e reformadores de estradas e trilheiras indígenas preexistentes, valendo-se de índios pacificados que bem conheciam os feixes de caminhos, de onde saíam e para qual destino.
Aluísio Almeida, explica melhor o curso deslocado da Peabiru, em Botucatu:
—"A tal estrada subiu a serra, ganhou as cabeceiras do Pardo (Pardinho) antigo Espírito Santo do rio Pardo e desceu aquele rio até as alturas de Santa Cruz do rio Pardo, donde passou para o afluente Turvo e saiu nos Campos Novos do Paranapanema (nome mais novo)"- (O Vale do Paranapanema, Revista do Instituto Histórico e Geográfico - RJ, Volume 247 - abril/junho de 1960: 41), sem prejuízos ao trecho prosseguinte ao Salto das Canoas (Paranan-Itu), desde onde possível a navegabilidade do Paranapanema em direção às Reduções Jesuíticas (1608/1628), e ao Rio Paraná.
—SatoPrado, apontam que o antigo caminho jesuítico, rumo aos aldeamentos no Paranapanema, era pelo Tietê desde onde a trilha rumo às cabeceiras do paulista Cuiabá (AESP, BDPI: Cart325602), daí a margeá-lo até o Paranapanema. Somente após 1620, com a entrada de Antonio [Campos] Bicudo no alto da serra e os detalhamentos das nascentes do rio Pardo, então Capirindiba, se fez comum o trecho desde a Serra ao Paranapanema, onde o Salto das Canoas [também Quebra Canoas, Paranitu, Yucumã e Salto do Dourado], em atual município Salto Grande, pela mesma cartografia, caminho dos bandeirantes e entradistas.