domingo, 20 de dezembro de 2009

'Guerra ao Índio' - recontro civilizatório

1. Leis de terras e de proteção indígena
O sistema sesmarial de distribuições de terras no Brasil, outorgado aos 20 de novembro de 1530, pelo rei português D. João III a Martim Afonso de Souza, cuja eficácia deu-se a partir da Carta Foral de 06/10/1531, e as primeiras distribuições ocorridas em 1532, vigorou até os 17 de julho de 1822, quando extinguida pela Coroa Portuguesa através da Resolução nº 76, produzindo vazio legal cessado com a promulgação da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como a Lei de Terras. 
Com a Independência do Brasil aos 22 de setembro de 1822, caíra o modelo legal português, porém o novo Estado não cuidou de qualquer legislação agrária, entre 1822/1850, período denominado 'extralegal' ou o 'império das posses', que privilegiava a elite brasileira nas ampliações e invasões de terras, trabalhando-as, para a garantia de direitos constitucionais e registros.
No interior paulista, entre Itapetininga e Botucatu, desde o início do século XIX registravam-se avanços de fazendeiros sobre terras sesmadas sem ocupações, ou nas demandas de direitos contra pequenos posseiros e arranchados. Também os donos de sesmarias, herdeiros ou sucessores, arremetiam-se para além dos limites outorgados ou tolerados pelo Império. 
Fazia-se preciso ação de governo para disciplinar as questões da terra, através de algum instrumento legal, consolidada na Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850 que, de certa forma, significou a iniciativa pioneira imperial em organizar a propriedade privada no Brasil, possibilitando legitimações de posses mansas e pacíficas, as adquiridas por ocupação primária e aquelas havidas do primeiro ocupante, desde que cultivadas e de moradia habitual do posseiro, devidamente comprovada. 
Afora as exceções, a lei determinava que todas as terras pertenciam ao poder público, inclusive as doadas em sesmarias que não cumpriram regras de ocupação, daí o termo 'terras devolutas'; e, a partir da entrada em vigor da Lei 601, o artigo 1º estabeleceu: "Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.", através de hastas públicas.
Há quem diga, não sem razões, que a 'Lei de Terras' foi imposição da elite brasileira antecipando-se aos efeitos da Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850, conhecida como 'Lei Euzebio de Queiroz' que, ao estabelecer a repressão ao tráfico de africanos no Brasil, previa o fim da escravização negra, ressuscitando aí a pretensão de José Bonifácio d'Andrada e Silva, de 12 de novembro de 1823, apresentada à Assembleia Constituinte e Legislativa do Império, para a abolição do comércio escravagista e a emancipação gradativa dos cativos existentes, com o compromisso do Estado que:
—"Todos os homens de côr forros, que não tiverem officio, ou modo certo de vida, receberão do Estado huma pequena sesmaria de terra para cultivarem, e receberão outro sim delle os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo." (Projetos para o Brasil, 1823: 69).—
A Lei Euzebio de Queiroz substituía outra nesse sentido, de 1831, promulgada e dita apenas "para inglês ver", e a escravidão negra somente chegaria ao fim em 1888, dada a resistência eficiente dos potentados rurais durante mais de meio século.
Porém, a Lei de Terras, pelas exigências, impedia ou limitava acesso à propriedade pelos trabalhadores brancos pobres, negros e mulatos forros, e imigrantes. O citado Bonifácio até propusera "(...) Favorecer a emigração de gente pobre do reino, e dos estrangeiros ativos, distribuindo-lhes terras, e dando-lhes os meios necessários" (Projetos para o Brasil, 1823: 154).
Ainda, a favor das elites, o artigo 6º da Lei 601/1850 não somente proibia a posse como também declarava, atingindo os pequenos posseiros, arranchados e quilombos:
—"Não se haverá por principio da cultura para a revalidação das sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer posse, os simples roçados, derribadas ou queimas de mattos ou campos, levantamentos de ranchos e outros actos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura effectiva e morada habitual exigidas (...)".
No entanto, mesmo que contrário aos interesses dos fazendeiros e latifundiários, ao governo caberia o direito em reservar terras devolutas para a colonização dos indígenas, fundação de povoações, abertura de estradas e outras servidões, de interesses do Estado, como exemplo, o 'uso público'. 
A regulamentação da Lei 601/1850, pelo Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854, determinava em seu Capítulo VI - Das terras reservadas - Art. 72: "Serão reservadas terras devolutas para colonisação, e aldeamento de indigenas nos districtos, onde existirem hordas selvagens." 
Conforme o artigo seguinte:
—"Os Inspectores, e Agrimensores, tendo noticia da existencia de taes hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu genio e indole, do numero provavel de almas, que ellas contêm, e da facilidade, ou difficuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Director Geral das Terras Publicas, por intermedio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessaria".
Segundo Azanha (2001: 2)"O texto é claro: 'nas terras devolutas que tiverem que medir'. Mas, medir para quem? Para o próprio Estado brasileiro, pois a Lei nº 601 foi estabelecida para legitimar posses particulares e revalidar concessões dadas a particulares para, a partir daí abolir a ocupação (...)."
Ainda o Azanha e referências, as terras brasileiras pertenciam ao Estado, por direito de conquista, e as partes "reservadas para colonisação de indigenas, (...), são destinadas ao seu usofructo (...)", portanto classificadas de 'uso público' e não 'devolutas'. 
No sertão botucatuense, desde a Serra às barrancas do Rio Paraná, entre o Tietê e o Paranapanema, a Lei nº 601/1850 não significou proteção indígena, dada a ausência do Estado em identificar locais e populações selvícolas aguardando a edição do Decreto nº 1.318 ocorrida apenas em 1854, período esse aproveitado pelos bugreiros nos avanços sobre territórios do centro sudoeste e oeste paulista, dizimando tribos inteiras e expulsando sobreviventes. 

2. A 'Guerra ao Índio' 
Theodoro iniciou a incursão sertaneja antecipando-se à 'Lei [Imperial] de Terras, nº 601, de 18 de setembro de 1850', num momento que o governo cedia aos conclamos dos fazendeiros, com ato permissivo de repressão aos índios vagantes e hordas selvagens. 
Numa brecha legal ou regra de interpretação, o Decreto Imperial nº 426, de 24 de julho de 1845 – 'Regulamento das Missões', reconhecia o direito de posse - ou usufruição - de terras aos índios aldeados, dentro dos limites da Missão, mas não aos índios selvagens e aqueles recalcitrantes ao aldeamento, e, então, o avanço do branco podia ser justificado, pois tais hordas impediam o progresso e colocavam em risco as famílias trabalhadoras. 
De outra forma, não havia aldeamento indígena adiante de Botucatu, e o de São Sebastião do Tijuco Preto – Piraju, apenas seria implantado em 1854. 
O bandeirante apresentou-se à frente de verdadeiro exército, com cerca de mil homens, conforme inferido num documento de junho de 1851 (DAESP/BT, 22/02/1851: 1, Caixa 40, Pasta 1), com o duplo propósito em fazer a extirpação étnica e a imediata ocupação das terras. 
O cabecilha dividira sua tropa em frentes ou colunas fortemente armadas, com líderes postos e instruídos para as ações predatórias. Os comandos receberiam suas pagas em porções de terras e as fracionariam para os comandados, além das partes que seriam postas a vendas e os lotes destinados aos povoados.
O etnocídio deu-se a partir de Avaré onde expulsos ou exterminados os Caiuá e Botocudo, numa guerra sangrenta: 
—"Na entrada da sertania serpeava um rio ao qual os índios Caiuá chamavam 'Abaré-i' (rio do homem solitário ou da sentinela, segundo uns, ou do padre ou monge, conforme interpretação de outros). E foi o vale do rio 'Abaré' o primeiro local visado pelos ‘posseiros’ vindos de Pouso Alegre. Exterminados ou expulsos os selvagens Caiuá, cuja taba ficava onde hoje se localiza a fazenda da Boa Vista, o mineiro José Teodoro de Souza pôs o nome de Rio Novo ao Abaré, e a região desbravada foi dividida entre os componentes da caravana de civilizadores" (Avaré, História e Geografia, 1939: 3).
Franzolin e Silva Junior, descreveram no Jornal Sudoeste do Estado Avaré-SP:
—"[Os índios] que habitavam a região acabaram exterminados pela tropa comandada por José Theodoro de Souza e Tito Corrêa Mello, numa guerra sangrenta que preparou o terreno para a chegada dos históricos fundadores da cidade de Avaré, o major Vitoriano de Souza Rocha e o alferes José Domiciano Santana".
Francisco Marins anunciou a consequência dos acontecimentos:
—"Com aquela luta na região de Avaré quebrara-se a última resistência dos bugres, pois o caminho ficara aberto, da serra para frente, em largo trecho e os perigos e sobressaltos das caminhadas iam desaparecendo. Os pioneiros, pondo pé de apoio na serra, invadiam o sertão e iam fazendo nascer os povoados de Avaré, Lençóis, Santa Bárbara do Rio Pardo, Timburi, São Manuel." (1985: 46).
Das razias e dadas cometidas contra os índios, já em 1861 oficialmente ninguém ignorava os horrores praticados:
—"(...) pellos bugreiros, e de maneira que foi totalmente destruido, sendo os homens á balla, e as mulheres e crianças a faca, com o único fim de apropriarem os optimos terrenos, que desgraçados occupavão, os quaes com a mania de novas posses os seos conquistadores venderão por pouco mais de nada, para levarem mais longe a devastação." (AESP/BT, Caixa 39, Doc. 41-B, Pasta 2: 0225-0226).
Nogueira Cobra relatou uma ocorrência de exterminação indígena:
—"Em seguida, os sitiantes penetraram nas habitações e encontrando-se com as índias, a umas aprisionaram, a outras mataram, bem como aos indiozinhos, aos quais chegavam a levantar do chão ou da cama, atira-los para o ar e espeta-los em ponta de faca; outras vezes toma-los pelos pés e dar com as suas cabecinhas nos paus, partindo-as. Às índias grávidas rasgava-lhes os ventres e depois de finda a carnificina, amontoavam os cadáveres sobre os quais lançavam fogo" (Cobra, 1923, p. 143).
Mas, não há de se falar em conquista territorial sem a presunção da resistência indígena. O memorialista Dantas confirma que "Houve lutas ferozes dos índios contra os exploradores e colonizadores, (...) e com violentos massacres e represálias recíprocas" (1960: 40). 
Marins descreveu certo ataque indígena e a reação branca, num relato muito próximo às atrocidades dos conquistadores relatadas por Nogueira Cobra e pelo [D]AESP, podendo ser fatos distintos ou oriundos de uma mesma fonte:
—"A gente de Teodoro queria se vingar dos índios que tinham feito um ataque ao acampamento e caíra em cima da bugrada sem dó. Mataram quase todos os homens e, das mulheres, só deixaram as novas para se aproveitarem delas. Tinham tanta sede de sangue que iam estripando até crianças e velhos, que achavam pelas redes, ainda dormindo. Dizem que atiravam indiozinho de colo para cima e esperavam embaixo, na faca. Pegavam outros pelas pernas e batiam com a cabeça deles nos barrotes das choças. Encontraram uma índia grávida e abriram a barriga dela (...). A aldeia dos índios ficou que era só cadáver que eles largaram para os urubus comerem, quando não atiravam às águas para pasto dos jacarés famintos" (Marins, 1985: 40-41.
As ações de conquistas não se limitaram a Avaré e adiante do Rio Turvo, sabendo-se, por documentos e expedientes oficiais que as operações atingiram outras regiões, com igual maneira para exterminar índios e expulsar sobreviventes, havendo-os, desde Avaré para além do Paranapanema, ou para os lados dos Vales Santo Anastácio, Peixe e Feio/Aguapeí, tomando e entregando as terras limpas aos partícipes da empreitada, financiadores os compradores de terras interessados em fazer vida no sertão.
O objetivo dos conquistadores "era tornarem-se realmente senhores da área que o registro lhes attribuiu, consentissem ou não os donos primitivos (...) encarniçada a lucta e só teve fim depois que os selvagens foram completamente exterminados." (Nogueira Cobra, 1923: 48). 
Fragmentos históricos mostram o lado cruel dessa atividade exercida pelo pioneirismo, avocado ao processo da dizimação indígena para ocupação territorial e de produção, conforme exigências do capital e interesses do estado.
Por onde passava, Theodoro, à frente do seu grupo ou às suas ordens, era visto como "matador de índios (...) armado de trabucos e enormes facões, foices e outras armas (...). Os silvícolas fugiam em debandada, deixando tudo a mercê dos invasores, inclusive cadáveres" (Chitto, 1972: 23). 
Donato qualificou Theodoro de "impiedoso conquistador, feroz perseguidor de índios." (1985: 110). 
No Turvo o avanço dos bugreiros foi traumático, não menos que em outros lugares, com as ações de bugreiros comandados: "O quê dizer, então de Chico [Francisco] de Pontes que fez barbaridades com os índios de São Pedro do Turvo?" (Marques - Padre, 2009: 26). 
No Vale do Pardo santa-cruzense também ocorreram atrocidades. Relatos ainda do século XIX não deixaram dúvidas que Manoel Francisco Soares, posseiro primitivo, muito combateu "a horda de indígenas ferozes, que infestaram estas paragens" (Almanach da Provincia de São Paulo, 1887: 541). 
A empreitada ocorreu num curto espaço de tempo entre 1850 e maio/junho de 1851, quando tribos inteiras exterminadas, às exceções onde os caingangues, e os índios sobreviventes arredados, e já se discutia a elevação da primeira Capela sertaneja, aonde Lençóis Paulista (DAESP/BT, Caixa 40, Pasta 1, 22/07/1851: 1), porém a escolha política e eclesiástica recairia sobre [São João de] São Domingos, localidade mais bem centralizada. 
Com a conclusão que nenhuma posse foi mansa e pacífica, e nem poderia ser, porque impossível imaginar a retirada indígena sem reações, compreende-se que a missão de José Theodoro de Souza não foi apenas 'povoar o sertão do Paranapanema', mas exterminar os índios, tomar-lhes as terras e entregá-las 'limpas' à civilização.
Apenas em 1889, o capitão Tito Correa de Mello minimizaria a tarefa:
—"De volta de sua excursão nas terras dos índios Caiuá e Botocudos, José Teodoro de Souza, que chefiava o bando de 'posseiros' consultou-me se devia conservar o nome dado pelos selvagens aos rios e morros encontrados, bem como aos campos, ao que retorqui ser melhor dar-lhes nomes novos, de acordo com a nossa linguagem. E então ficou combinado o registro das posses efetuadas." (Avaré, História e Geografia, 1939: 3). 
Tito ainda não se encontrava em Botucatu, na década de 1850, e nenhum documento localizado coloca-o por lá, entre 1847/1863, embora alguns parentes de sua mulher já em 1860 residentes na região.
Se o Tito não estava presente na região botucatuense, nem era, ainda, líder político local ou regional naqueles tempos de formação, então, em absoluto teve qualquer participação ou decisão na invasão sertaneja de 1850/1861; menos ainda, que tenha orientado alguém como proceder registros, nos quais nem figura como testemunha.